Feminismo? Caridade?
A palavra "feminismo",
de significação elástica, deturpada, corrompida,
mal interpretada, já não diz nada das reivindicações
feministas. Resvalou para o ridículo, numa concepção
vaga, adaptada incondicionalmente a tudo quanto se refere à
mulher.Em qualquer gazela, a cada passo, vemos a expressão
"vitórias do feminismo" – referente, às
vezes, a uma simples questão de modas! Ocupar uma posição
de destaque em qualquer repartição pública, cortar
os cabelos "à la garçonne", viajar só,
estudar em academias, publicar um livro de versos, ser "diseuse",
divorciar-se três ou quatro vezes, pelas colunas do "Para
Todos", atravessar a nado o Canal da Mancha, ser campeã
de qualquer esporte. – tudo isso consiste "nas vitórias
do feminismo", vitórias que nada significam perante o
problema da emancipação integral da mulher.
A
verdadeira emancipação é posta de lado
É uma
tática bem manejada. Enquanto as mulheres se contentam com
essas "vitórias", a sua emancipação
é posta de lado ou nem chega a ser descoberta pelos tais reivindicadores
de direitos adquiridos... E essas reivindicações não
se podem limitar a ação caridosa ou a um simples direito
de voto que não vem, de modo algum, solucionar a questão
da felicidade humana e se restringirá a um número limitadíssimo
de mulheres. Aliás, quando os homens sérios retiram-se,
num ostracismo voluntário, dessa política de latrocínios
oficializados, desse bacanal parasitário, desse despudor em
se tratando dos negócios públicos; quando se decreta,
positivamente a falência, o descrédito do parlamentarismo
em toda uma sociedade em plena decomposição, –
é agora que a mulher acorda e sai correndo atrás do
voto, coisa que deveria ser reivindicado a cem ou duzentos anos atrás...
o supõe, ingenuamente, estar cuidando dos interesses femininos
ou dos interesses sociais.
A
solução para os problemas humanos não é
a caridade
E quando chegamos
à conclusão de que a caridade humilha, deprecia, desviriliza;
desfibra a quem dá e a quem recebe; quando sentimos que a solução
para os problemas humanos não é a caridade que sufoca
todas as fibras interiores de que tira, às faces escancaradas
da miséria, as sobras, o supérfluo; a caridade que estrangula
todas as energias latentes daquele que estende as mãos para
receber, servilmente, o que sobra das orgias e da exploração
dos que vivem à custa do trabalho alheio; quando por si mesma,
a moral de que se alimenta a sociedade vigente decreta a falência,
essa moral odiosa, de classes de ricos piedosos e de pobres a receberem
esmolas, de exploradores caridosos e explorados calculadamente vigiados
pela força armada, mantenedora da passividade exterior e da
revolta latente dos ilótas modernos; essa moral farisaica que,
para os ricos aconselha a caridade, a distribuição ostentosa
do supérfluo adquirido à custa do suor proletário,
e para os pobres recomenda a resignação passiva, o receber
humildemente as sobras que espirram, por acaso, das mesas dos ricos
e olhar ainda agradecidos, para essas mãos orgulhosas que se
divertem nas caridades exibicionistas dos salões elegantes,
tirando partido das misérias sociais para o seu prazer; quando
novas fórmulas de uma moral mais pura se nos apresentam para
outra organização social de mais eqüidade, –
ainda a mulher está convencida de que a sua mais alta missão
na vida é a caridade e só conhece a questão social
através da caridade, mas, dessa caridade de chás, tangos
e requebros nos salões...
Gastam
somas fabulosas com a construção de igrejas e exploram
torpemente os criados
Essa mesma mulher
que reparte altas somas para a construção de igrejas
ou "creches" religiosas, explora, torpemente, os criados,
a cozinheira, a lavadeira, a costureirinha contratada para trabalhar
em sua casa, horas e horas, sob o olhar impertinente da mundana ociosa,
da criatura virtuosíssima que, pelas colunas da imprensa, espalma
as mãos dadivosas consolando os infelizes, os mal instalados
na vida... Dá por um chapéu, por uma pluma, um brinco,
um vestido de baile, um leque, uma sombrinha, uma jóia, por
qualquer fantasia, somas fabulosas, inacreditáveis, entretanto,
exerce pressão vergonhosa sobre a sua bordadeira que lhe cobra
uma miséria por qualquer trabalho feito com sacrifício
inaudito, em horas triturantes de agonia, à noite depois de
exausta do trabalho diário do atelier – no qual também
já lhe tiraram gotas de sangue, na amargura da exploração
pelo salário quotidiano.
Chora
ante o ecran do cinema e fica impassível ante as injustiças
sociais
Sentimentalismo
de epiderme que faz chorar ante o écran do cinema e, todavia,
soluça em torno da elegância caridosa, toda a miséria
ciclópica da luta pela vida e ela não vê, não
quer ver o sofrimento milenar da mulher proletária , calculadamente
cultivada a sua ignorância através do pão duro
de cada dia, no trabalho exaustivo da fábrica, das oficinas
e no lidar doméstico – servindo à ociosidade farta
da alta sociedade ou dos bordéis do vício elegante.A
piedade das senhoras caridosas não vê, não sabe
da luta dantesca de uma pobre moça do povo que resvala na miséria
mais negra se não cai nos braços escancarados da prostituição
"necessária" nesta sociedade bestial e moraliteísta.
A atividade da mulher elegante só sabe votar-se a essa caridade
exibicionista dos salões iluminados, onde ostenta a sua beleza
e sentimentos problemáticos de uma bondade estudada no espelho...
A mulher é vaidosa e comodista e os psicólogos femininos
preocupados em agradar, em fazer psicologia de "boudoir"
– não perscrutam, não querem ver a falsidade dos
altos sentimentos caridosos do mundanismo elegante. Prefere continuar
a sofrer as conseqüências do seu servilismo, da sua submissão
a desenvolver o caráter, as faculdades de iniciativa para lutar
contando com as suas próprias energias. Procura conservar o
seu parasitismo dourado, indiferente aos males sociais: é odalisca
e cortesã, mas, vai à Igreja, em horas chics, rezar
pelo próximo e, dançando um passo moderno, exerce a
caridade. Como é odiosa e perversa essa caridade!
Civilização
de protetores e protegidos
E a mulher duplamente
escravizada não compreendeu que é necessário
sim, alevantar o ânimo abatido do que luta, do que pensa sucumbir
aos embates da injustiça social, dar-lhe meios de subsistência
pelo próprio esforço e fazer dele um indivíduo
capaz de ver a casta civilização de fartos e famintos,
de ociosos parasitas vivendo à custa do sacrifício alheio,
civilização de protetores e protegidos, de lobos e cordeiros,
em que os mais altos sentimentos se confundem com as mais torpes baixezas,
de chibata azorrague, de avariose e cafetismo, de excesso de ociosidade
e excesso de miséria. E tudo, inclusive, principalmente a literatura,
essa literatura nefasta, de elogios, de louvores incondicionais, literatura
odiosa endeusando a fêmea, literatura à Júlio
Dantas tudo contribui para o cultivo sistemático da pieguice,
de chiliques e requebros, do falso sentimento, do sentimentalismo
para o público. E o raciocínio, por si obscurecido através
da escravidão feminina secular, da tutela dos dogmas e da moda,
dos prejuízos e da rotina, fecha-se sob a chuva de galanteios,
de frases feitas. E a mulher esquece-se de que tem mais alguma coisa
além da sua carne, do seus contornos perturbadores. Deixa de
ser mulher para ser apenas o animal do homem. A grande miséria,
a enorme dor das injustiças sociais vive ao seu lado e a mulher
desvia o olhar para poder divertir-se, gozar das regalias e do seu
comodismo de "bibelot", de lulu número 1, prisioneira
nas gaiolas douradas das avenidas elegantes, sempre a mesma escrava,
odalisca e cortesã.
Adormecida
dentro dos trapos
A alma feminina
jaz adormecida dentro dos trapos, das jóias, do império
da moda, – a eterna sultana desse harém de civilizados
que ainda compram, vendem, exploram, seduzem, abandonam por imprestável
a mesma mulher, cuja posse exclusiva consiste a sua preocupação
única. É deprimente a situação da mulher
superior, neste meio de cafetismo social, em que os homens não
sabem olhar uma mulher senão desrespeitando-a.
E para quê
enumerar essas associações atrasadas do feminismo de
caridades?
Sem dúvida
é doloroso perscrutar as misérias dos famintos, da nudez,
dos cortiços.
Mas, não
se trata de esverrumar a causa da chaga sangrenta da miséria,
mesmo do coração da opulência, ao lado da ociosidade
que se diverte cinicamente, depois de atirar uns níqueis para
os esfaimados, níqueis roubados ao trabalho árduo dos
explorados do salário.
Divertimentos
à custa da dor
Há apenas
a preocupação de se jogar migalha na boca escancarada
da fome, talvez para que nos deixem em paz... E, divertir-se a custa
da dor, da amargura, da fome, é insultar o sofrimento.
E a miséria
está de tal modo humilhada, deprimida, que nem forças
tem para devolver, orgulhosamente, os restos que se lhe atiram através
dos esplendores dos salões elegantes, por entre as pontas dos
dedos enluvados para que não volte um salpico das calçadas
a enlamear-lhes as mãos dadivosas. Não houvesse ociosos
fartos, degenerados pelo tédio e pelos vícios elegantes,
não houvesse a exploração do homem pelo homem,
não houvesse a exploração da mulher pelo homem,
e certo não seria "necessária" a prostituição,
essa perversidade inominável em nome da virtude.
A caridade é
"a janela da consciência", aberta para a exploração
diurna e noturna do proletariado nas oficinas, nas fábricas
e do camponês, do colono na agricultura. Para que a elegância
brilhe, para que triunfe o mundanismo, para que os "cabarets"
e os "cassinos chics" regorgitem de ociosos – é
preciso que o colono, campônio e o operário de ambos
os sexos seja triturado, dobrado, esmagado nas oficinas, na lavoura,
nas fábricas, dia após dia, sem tréguas, sem
nenhum direito a não ser o direito ao trabalho obrigatório.
As
várias superstições
É a escravidão
moderna do salário para matar a fome e cobrir a nudez dos filhos,
também cedo destinados à exploração torpe
e miserável do parasitismo social, incansável na sua
faina, de acumular bens para gozar à custa do suor exaustivo
das máquinas de trabalho, dos animais de tiro, do proletariado
mundial. Devemos à superstição governamental,
à superstição religiosa sectarista, à
superstição patriótica, à superstição
nacionalista, à superstição do progresso material,
à ganância de uns e ao servilismo da maioria –
o predomínio desta civilização de duas classes
sociais: a dos ricos e a dos pobres.
A humanidade
custará a compreender que a vida social poderia desdobrar-se
num ambiente de solidariedade, de auxílio mútuo, sem
amos nem escravos, sem protetores e protegidos, sem representações
parlamentares em mediocracias diplomadas...
Religiões
- instrumentos de explorações dos incautos
Levará
ainda tantos séculos a perceber que as religiões organizadas,
política e economicamente, não são senão
instrumentos de exploração dos ignorantes, dos desfibrados,
dos ambiciosos, dos moluscos, dos que carecem de espinha dorsal...
Ninguém cresce na sua individualidade através da consciência
ou, talvez, da inconsciência de outrém. Não é
demais repetir que a atual organização social baseia-se
na ignorância de uns, no servilismo da maioria, na astúcia
de outros, no comodismo de muitos, na exploração dos
espertos, na felicidade dos "proxenetas" e "souteneur
", desse cafetismo, desse regime de concorrência, em que
se compra e vende tudo, inclusive o Amor e a Consciência –
as mais altas manifestações do que é nobre e
belo e grande, do que tumultua na vibração interior
da nossa vida profunda.
Representação
parlamentar: circo de cavalhinhos
Sentimos que
as mentalidades de "elite" ultrapassaram de há muito
a moral atual que tenta acorrentar ainda as aspirações
humanas libertárias. Tudo faliu: a igreja, o parlamentarismo,
a academia, a instituição legal do casamento, o ensino
universitário, o patriotismo. Pois bem: é agora que
a mulher vem reivindicar o direito do voto – quando a representação
parlamentar é circo de cavalinhos, o sufrágio universal
uma mentira. A mulher, essa energia latente formidável que
vem despertando para a atividade social, já foi enlaçada
pelo passado reacionário – para dispersar todas as suas
forças na corrente das "verdades mortas".
Feminismo
de votos e feminismo de caridades
É a razão
por que não posso aceitar nem o feminismo de votos e muito
menos o feminismo de caridades. E enquanto isso a mulher se esquece
de reivindicar o direito de ser dona de seu próprio corpo,
o direito da posse de si mesma. Sou "indesejável",
estou com os individualistas livres, os que sonham mais alto, uma
sociedade onde haja pão para todas as bocas, onde se aproveitem
todas as energias humanas, onde se possa cantar um hino à alegria
de viver na expansão de todas as forças interiores,
num sentido mais alto – para uma limitação cada
vez mais ampla da sociedade sobre o indivíduo. Que representa
uma "creche", um hospital ou o direito de voto ante a vastidão
dos nossos sonhos de redenção humana pela própria
humanidade? É subir mais alto o coração e o cérebro,
ver horizontes mais dilatados -além do sectarismo religioso
ou da superstição social governamental. Isso é
feminismo? Dêem o nome que quiserem, pouco importa: o que esse
feminismo (não me agrada a expressão tão estreita
para ideal tão amplo) reivindica é o "Direito Humano",
o Direito Individual, acima de qualquer outro direito, além
dos direitos limitados ao parlamentarismo, além dos direitos
de classe.
Maria Lacerda
de Moura
Revista Utopia
# 9