(Apresentamos
aqui a introdução do livro "A Vida Secreta da Natureza"
de Carlos Cardoso Aveline.)
A
natureza, cuja evolução é eterna, possui valor
em si mesma, independentemente da utilidade econômica que tem
para o ser humano que vive nela. Esta idéia central define
a chamada ecologia profunda – cuja influência é hoje
cada vez maior – e expressa a percepção prática
de que o homem é parte inseparável, física, psicológica
e espiritualmente, do ambiente em que vive.
Na
nova era global, milhões de pessoas voltam a perceber que o sentimento
de comunhão com a natureza é um dos mais elevados de que
o ser humano é capaz, e fonte de grande felicidade. Não
é coisa do passado ou um costume do tempo das cavernas. Ao contrário,
deverá marcar as civilizações do futuro. Em qualquer
tempo histórico, o convívio direto com a natureza foi
e será um fator decisivo para o bem-estar físico e psicológico
do ser humano.
A
expressão ecologia profunda foi criada durante a década
de 1970 pelo filósofo norueguês Arne Naess, em oposição
ao que ele chama de "ecologia superficial" – isto é,
a visão convencional segundo a qual o meio ambiente deve ser
preservado apenas por causa da sua importância para o ser humano.
Ao
nível superficial, o homem coloca-se como centro do mundo e quer
preservar os rios, o oceano, as florestas e o solo porque são
instrumentos do seu próprio bem-estar. Quando olha para o meio
ambiente com esta preocupação, o homem só enxerga
os seus próprios interesses, já que, inconscientemente,
se considera a coisa mais importante que há no universo. Olha
a árvore e vê madeira. Olha o solo e vê o potencial
agrícola ou a possível exploração de minérios.
Olha o rio e vê um curso d’água navegável
por barcos de determinado porte. Ele sabe que deve preservar os chamados
recursos naturais, porque são preciosos. A natureza
para ele é um grande cofre, abarrotado de riquezas renováveis,
mas que deve ser cuidadosamente preservado. Daí a necessidade
de autoridades ambientais atuantes e uma boa legislação
que preserve o meio ambiente.
Este
nível da consciência ecológica tem importância,
porque faz com que os seres humanos questionem seu comportamento econômico
e comecem a perceber mais claramente que a ética, afinal, dá
bons resultados. A postura mais primitiva, de mera pilhagem, vem sendo
deixada de lado em grande parte da economia. As políticas públicas
de meio ambiente têm reforçado até hoje prioritariamente
este primeiro nível, claramente insuficiente, de consciência
ambiental. A multa, a repressão, a aplicação da
legislação ambiental e a fiscalização seriam
instrumentos muito úteis a curto prazo, se no Brasil a política
nacional de meio ambiente não tivesse sido tão persistentemente
esvaziada.
Mas
as boas notícias são mais fortes que as más. Uma
nova consciência empresarial já repensa o conjunto das
atividades econômicas a partir da meta de administrar sabiamente,
a longo prazo, os recursos naturais. As gerações mais
recentes de empresários e executivos trazem consigo uma forte
consciência ambiental. Sua atitude é compatível
com a descrição holista do universo e com a ecologia profunda.
Progresso econômico e bem-estar material deixam de ser inimigos
da preservação ambiental ou da busca espiritual. As novas
tecnologias permitem aumentar a produção, ao mesmo tempo
que se diminui, radicalmente, o impacto ambiental. O verdadeiro progresso
econômico – surge agora um consenso em torno disso –
deve ser socialmente justo e ecologicamente sustentável. As medidas
convencionais e de curto prazo para a preservação ambiental
combatem os efeitos da devastação e pressionam pela gradual
adaptação das atividades econômicas às leis
da natureza. Mas a ecologia profunda dá um sentido maior às
estratégias convencionais de preservação. Atacando
as causas ocultas da devastação, projeta e estimula o
surgimento de uma nova civilização culturalmente solidária,
politicamente participativa e ecologicamente consciente.
Em
última instância, as causas da destruição
ambiental são o individualismo ingênuo, o sentimento de
cobiça material sem freios e a ilusão de que o ser humano
está separado do meio ambiente, podendo agir sobre ele sem sofrer
as conseqüências do que faz. Ter isto claro é importante.
No entanto, não basta uma percepção teórica
deste dilema ético. Além de compreender intelectualmente
o princípio da unidade ecológica de tudo o que há,
é oportuno vivenciar e deixar-se inspirar pelo
sentimento da comunhão com a natureza. Deste modo, aprende-se
a colocar cada um dos processos econômicos e sociais a serviço
da vida, já que é absurdo pretender inverter o processo
e colocar a vida a serviço deles.
Não
há, pois, oposição real entre a ecologia convencional
ou de curto prazo e a ecologia profunda ou mística. São
dois níveis diferentes de consciência. Ambos são
indispensáveis, e são mutuamente inspiradores. Foi em
meados da década de 1980 que diversos pensadores – Warwick
Fox, Henryk Skolimowski e Edward Goldsmith, além do próprio
Arne Naess – começaram a produzir textos variados a partir
do ponto de vista da ecologia profunda. A nova física e a nova
biologia, com Fritjof Capra, Gregory Bateson, Rupert Sheldrake, David
Bohm, e também os trabalhos científicos de James Lovelock
e Humberto Maturana, entre outros, deram legitimidade científica
à ecologia profunda. Em sua vertente religiosa, esta corrente
de pensamento tem ampla base de apoio na tradição mística
de todas as grandes religiões da humanidade. São Francisco
de Assis, padroeiro da ecologia, está longe de ser uma figura
isolada.
Cauteloso,
Arne Naess recusou-se a criar um sistema racionalmente coerente
– um circuito fechado de idéias – capaz de limitar
o conceito de ecologia profunda, e manteve-o como uma idéia aberta
segundo a qual a variedade da vida é um bem em si mesma. Para
Naess, esta ecologia surge do reconhecimento interior da nossa unidade
com a natureza. O fato nem sempre requer explicações e
muitas vezes não pode ser descrito com palavras. Mas a ação
freqüentemente mostra com clareza o que é ecologia profunda.
Em
certa ocasião, um rio da Noruega foi condenado à destruição
para que fosse construída uma grande hidrelétrica. As
margens do curso d’água seriam inundadas para que se fizesse
o lago da barragem. Um nativo do povo Sami recusou-se, então,
a sair do lugar. Quando, finalmente, foi preso por desobediência
e retirado dali à força, ele não teve opção.
Mais tarde a polícia perguntou-lhe por que se recusara a sair
do rio. Sua resposta foi lacônica:
"Este
rio faz parte de mim mesmo".
O
indígena estava certo. O meio ambiente faz, realmente, parte
de nós mesmos. São dele o ar que respiramos e a água
que compõe 70 por cento do nosso corpo físico. Dele vêm
os nutrientes que renovam a cada instante as nossas células.
Esta unidade dinâmica não está limitada ao plano
material da vida, mas também é psicológica e espiritual,
mesmo que alguns de nós não tenham plena consciência
disso.
A
Vida Secreta da Natureza reúne textos publicados inicialmente
nas revistas Planeta, Planeta Nova Era e outras publicações.
A seguir, veremos experiências de contato direto com o mundo natural
como fonte de inspiração para a alma humana em seu crescimento
interior. E também reflexões sobre a proposta de um desenvolvimento
ecologicamente sustentável; sobre a cidadania local e global
como base para a construção de uma civilização
solidária; e sobre a poderosa combinação atual
entre o pensamento ecológico, a ciência moderna e a tradição
esotérica.
Brasília,
30 de janeiro de 1999.