Notas
sobre a autonomia operária na Itália
Coletivo
Rete Operaia (Precari Nati)
Apresentação
O
Coletivo Rete Operaia é uma articulação de trabalhadores
em Bolonha, na Itália, que edita uma revista chamada Precari
Nati. Composta por algumas dezenas de jovens operários, em
sua maioria não qualificados e submetidos a relações
precárias de trabalho, a Rete Operaia busca desenvolver um
trabalho de construção e ligação de coletivos
autônomos nas empresas (atuam diretamente em fábricas
químicas, metalmecânica e em empresas de telecomunicação).
Não é um partido, mas possui uma forma organizada que
lhe permita – diz numa mensagem para nós – "ser
um ponto de contato para todos os trabalhadores revolucionários
numa perspectiva comunista internacionalista. Somos um grupo de operários
que se bate pela autonomia operária e se concebe instrumento
e não direção para a classe operária".
Colaboram com diversos coletivos e publicações de tendência
comunista-conselhista e autônoma na Europa.
O
artigo que publicamos neste número foi escrito para a nossa
revista, como contribuição à divulgação
no movimento operário e revolucionário no Brasil das
atuais características e tendências do movimento operário
autônomo na Itália.
Como
se sabe, do fim dos anos 60 ao final dos 70, desenvolveu-se na Itália
um amplo movimento de lutas operárias, a partir de baixo, sem
a direção dos sindicatos e partidos da esquerda oficial.
Ações massivas e radicalizadas – que articulavam
desde a resistência cotidiana nas fábricas com a sabotagem
dos produtos do trabalho e das máquinas, ocupações
de casas, coletivos de autonomia cultural até as "greves
selvagens" (greves sem e contra as direções sindicais)
e confrontos de rua – marcaram esse período de crise
revolucionária na Itália. Foi neste período que
tanto a prática quanto a reflexão acerca da autonomia
operária ganharam fôlego na Itália, com o surgimento
de diversos coletivos e movimentos autônomos e diversas correntes
de pensamento autônomas. Numericamente, avalia-se que cerca
de 13 milhões de trabalhadores – numa população
então de 50 milhões de italianos – participaram
diretamente das diversas formas que assumiu o movimento de autonomia
operária, contrastando, a esse respeito, com os três
milhões de eleitores do PC Italiano. "Não obstante",
dizem abaixo os companheiros de Rete Operaia, "só em determinados
momentos houve uma relação dialética entre as
lutas autônomas [dos operários] e os organismos autônomos".
Momentos sem dúvida importantes em que a luta autônoma
encontrou suas próprias formas de organização
foram as Assembléias Autônomas dos operários da
Alfa-Romeo e da Pirelli, em Milão, bem como a construção
de redes de coletivos fabris.
Utilizando-se
do terrorismo, o Estado conseguiu manobrar o estado de espírito
dos trabalhadores e da população, desencadeando uma
enorme onda repressiva sobre o movimento autônomo dos trabalhadores.
O saldo dessa onda repressiva eqüivale em números a um
final de guerra civil: cinco mil presos políticos. É
interessante notar que os primeiros dos grandes atentados terroristas,
em 12 de dezembro de 69, na Piazza Fontana, em Milão, e na
cidade de Brescia, no Norte da Itália, foram inicialmente atribuídos
pelo Estado a militantes anarquistas e depois descoberto que, na verdade,
tiveram origem nos próprios órgãos de segurança
do Estado – e com o objetivo, exatamente, de fazer recuar as
lutas operárias; objetivo de início parcialmente conseguido,
pois os operários metalúrgicos desmarcaram as greves
selvagens já anunciadas para a partir de 19 de dezembro, aceitando
assim os acordos impostos pelos sindicatos. Esses atentados terroristas
foram na verdade um massacre de trabalhadores, preparado pelo Estado
para intimidar e confundir, e precisamente em cidades e locais nos
quais havia grande concentração operária e grandes
iniciativas de lutas. Essa parece ter sido a lógica mantida
pelo Estado para deter o crescente espírito de luta do proletariado
na Itália. Iniciado em 68, com umas primeiras revoltas operárias
em Turim, o "maio de 68" italiano durou dez anos. Chegou
ao final precisamente a partir da escalada repressiva do Estado apoiado
nas "leis antiterroristas" que ele mesmo impusera após
o seqüestro e assassinato de Aldo Moro, em 78 – seqüestro
e assassinato nos quais a participação do próprio
Estado permanece, até hoje, uma suspeita.
Esse
longo "maio italiano" se situa historicamente – após
o movimento de ocupações de fábricas e greves
selvagens em maio de 68 na França – em um movimento mais
amplo de iniciativa autônoma do proletariado nos países
industriais do pós-guerra, iniciado pelos conselhos operários
húngaros em 56 e que se desenrola até a derrota das
lutas autogestionárias dos operários poloneses em 1980.
No
artigo que segue, os companheiros da Rete Operaia retomam algumas
informações desse período italiano e, principalmente,
nos informam das características atuais do movimento da e pela
autonomia operária na Itália.
Uma
precisão inicial O denominado "Movimento Autônomo"
nasce durante os anos 70, ainda que algumas elaborações
deste movimento possam ser encontradas no debate internacional que
marcou os anos 20 entre os comunistas oficiais, os comunistas de esquerda
e os anarquistas. Nos anos 50 e nos primeiros anos dos 60 na Itália,
França, E.U.A., em torno das revistas "obreiristas"
ou "antiautocráticas", Socialisme ou Barbarie para
a França, Correspondance para o E.U.A., Quaderni Rossi [Cadernos
Vermalhos] para a Itália. Na Itália, freqüentemente
os setores neoleninistas deram atenção unicamente à
corrente teórica do "Movimento Autônomo" que
segue a via da experiência política da esquerda do PSI
(Partido Socialista Italiano), aglutinada em torno dos Quaderni Rossi,
uma das primeiras revistas "obreiristas" italianas. Não
obstante, a influência do "Movimento autônomo"
foi muito ampla e não pode ser reduzido a esta corrente; na
Itália, outras experiências existiram, como o grupo Unitá
Proletaria, formação vinda da esquerda oficial e mais
próxima à esquerda comunista.
O
"Movimento Autônomo" nos anos 70 teve em seu interior
diferentes componentes, um leninista que nasceu da dissolução
das organizações da nova esquerda na Itália (Pottere
Operaio, Lotta Continua, PC-ml, etc...) e outras de derivação
libertário-conselhista. Ao lado desses dois grandes setores,
havia o setor "armado" que se reconhecia em variadas organizações
(Prima Linea, Nuclei Armati Proletari e algumas colunas das Brigate
Rossi). Tal movimento era então um todo de tendências
coletivas, grupos, rádios livres, revistas, que "coabitaram"
dentro de um denominado mais geral "movimento" composto
por coletivos, coordenações em território e em
fábrica, lutas específicas... Não obstante, só
em determinados momentos houve uma relação dialética
entre as lutas autônomas e os organismos autônomos. Em
muitos casos, no surgimento e desenrolar das lutas se desenvolveram
coletivos autônomos no interior das fábricas ou nas áreas
de moradia, mas este impulso terminou se tornando o espaço
"organizado" de grupos radicais que não conseguiram
ir ao dos trabalhadores politizados. Com isto não se quer se
calar frente às fecundas intuições desta experiência,
mas colocá-la em sua justa dimensão; muitas vezes se
acredita em uma coincidência entre as lutas autônomas
e os grupos autônomos, mas isto é como acreditar que
os conselhos operários no passado tenham sido desenvolvidos
pelos conselhistas ou sovietistas.
De
um ponto de vista teórico, seguir os perfis específicos
dos diversos componentes – alguns até mesmo retornam
ao interior dos partidos institucionais – envolveria um artigo
à parte. Nós nos limitaremos a ilustrar o panorama do
movimento autônomo na Itália e a presença de algumas
lutas autônomas que se desenvolvem neste momento no território
italiano.
O
panorama do Movimento Autônomo Atualmente na Itália o
Movimento está dilacerado por profundas divisões. Tentaremos
ilustrar as áreas principais do "Movimento" na Itália:
Há
uma área definida pós-autônoma que abrange boa
parte da experiência dos Centros Sociais Autogeridos, que está
politicamente ou dentro [do Partido] da Refundação Comunista
(o novo Partido Comunista oficial) ou é seu simpatizante ou
do Partido dos Verdes. Este componente desenvolveu e levou ao extremo
a concepção de superação do conceito de
classe. Este setor fala até agora expressamente de "cidadão"
em lugar de "proletário", desenvolvendo e aumentando
as pequenas empresas econômicas, nascidas freqüentemente
nos CSA's. Não estão então interessados em uma
mudança da sociedade, correspondente ao fim do capitalismo,
mas em uma democratização progressiva dele. Tal componente
é aquele que tem o maior sucesso midiático, devido igualmente
ter relações privilegiadas com os partidos institucionais.
A atividade desse setor – além da defesa político-legal
das estruturas das pequenas empresas nascidas nos CSA's – se
situa na frente ambiental, antifascista e intervêm nas lutas
dos imigrantes na Itália, embora não colhendo a real
dimensão destes proletários, pondo o problema de classe
como sendo um problema democrático. A palavra de ordem deste
setor é o chamado "salário social", que é
uma reproposição de uma política neokeynesiana,
pedindo um maior esforço do Estado na distribuição
de renda aos proletários.
Próximo
deste componente há a denominada galáxia das Cobas (organismos
sindicais de base) que também expressando uma viva crítica
aos sindicatos oficiais se afiliam aos esquemas sindicais clássicos
e são incapazes de ver os limites intrínsecos da prática
sindical nesta determinada etapa de acumulação do sistema
de produção capitalista. Dentro de tal galáxia,
as correntes políticas mais discrepantes coabitam, dos maoistas
aos anarco-sindicalistas. O seu nível de proposta política
permanece preso à defesa do Estado social.
Há
também toda uma série de grupos organizados em coletivos
políticos nas áreas de moradia, que se ocupam desde
o problema dos imigrantes àquele dos precários, ao apoio
das lutas de liberação nacional (dos bascos, da Irlanda,
da guerrilha na América do Sul e Ásia), ao apoio dos
prisioneiros políticos das organizações comunistas
combatentes na Itália, coletivos estudantis, coletivos de trabalhadores,
centros populares autogeridos, casas ocupadas por anarcopunk etc....
Esta galáxia produz numerosos fanzines, revistas, boletins.
Também neste caso é impossível decifrar as políticas
básicas destes grupos tendo em vista sua extrema diversificação
e setorialidade.
Finalmente,
há ainda componentes mais estruturados como organizações
anarquistas, revistas libertárias, ou partidos de inspiração
maoista, trotsquista, que tendo também uma linha própria
convivem dentro do "movimento."
Atualmente,
o componente ligado às correntes conselhistas-autônomas
e à esquerda comunista (se se exclui a miríade de partidinhos
bordighistas) não abrange muitos coletivos e grupos na Itália.
Há seguramente um déficit de projetualidade e de dimensão
coletiva decorrente ainda de um clima de paz social que só
nestes últimos anos começa a se dissolver com o fim
da hipótese neokeynesiana. Apesar disso, permanecem numerosos
defeitos intrínsecos ao "Movimento". O maior defeito
é a cisão que muitos grupos fazem entre um imediatismo
ousado (a ação), que nasce muito freqüentemente
de uma incapacidade analítica de enfrentar os problemas historicizando-lhes
em relação ao movimento proletário, e, no outro
lado, a pesquisa histórico-analítico com fim nela mesma,
que, descobrindo os nós histórico-teóricos do
movimento proletário em seu complexo, também não
conseguiu ter uma relação dialética com o presente.
Tal problema não é de hoje, mas foi também infelizmente
um das constantes do movimento autônomo no passado. O movimento
autônomo conseguiu em grande parte entender as mudanças
atuais, o desenvolvimento de uma mão-de-obra não qualificada,
a ruptura com o plano institucional imediato, mas se ressente de uma
cuidadosa análise em relação ao desenvolvimento
do movimento proletário e de uma perspectiva revolucionária
comunista geral, é por isto que grande parte de seus componentes
permaneceu deslumbrada com os subprodutos do neoleninismo ou do espontaneísmo
maoista. O problema do stalinismo e o leninismo, incluindo o papel
do partido e do sindicato e da relação entre ciclo econômico
e luta de classe, foi deixado no esquecimento. Estes problemas eram
descartados, não tomando a importância destes assuntos,
para então tomar por boas muitas das lendas do stalinismo (antifascismo
democrático) ou do leninismo (luta de libertação
nacional, papel positivo do sindicato), usando estes como atalho já
que não se tinha nenhum intenção de enfrentar
os problemas gerais. Apenas poucos grupos conseguiram fundir a moderna
escola da composição de classe às elaborações
histórico-analíticas do movimento proletário.
No entanto, por causa da rápida restrição das
lutas autônomas, estas experiências não conseguiram
ultrapassar os outros componentes que têm hegemonia no interior
do Movimento Autônomo. As lutas autônomas .
Se
é verdade que há um atraso político na Itália,
no interior dos coletivos políticos do Movimento Autônomo,
isto não impede que atualmente a classe esteja produzindo algumas
lutas e batalhas sociais completamente autônomas e desatreladas
dos sindicatos e partidos oficiais, chegando ao uso de formas extralegais
de luta. Há numerosas demonstrações de defesa
e ampliação do salário indireto (transporte,
moradia), o que provoca em determinadas faixas do proletariado –
de modo especial entre os proletários imigrantes de fora da
comunidade européia – ocupações de casas,
luta por reduções drásticas do preço dos
ônibus. Nas empresas, têm havido algumas lutas completamente
desatreladas do plano sindical (seja o sindicalismo oficial, seja
o sindicalismo de base), apesar de que no terreno da produção
ainda haja uma habilidade do capital para se defender de modo satisfatório,
revertendo grande importância a este setor, visto seu papel
central para a criação da mais-valia. Permanece porém
como dado empírico a persistência de uma luta subterrânea
da classe trabalhadora no uso do absenteísmo e da sabotagem
(em uma empresa, em Turim, há alguns meses, a direção
chamou a polícia política especial para descobrir entre
os trabalhadores os autores das numerosas sabotagens que aconteceram)*.
Outras
demonstrações são as lutas do proletariado encarcerado
(freqüentemente proletários imigrantes de fora da comunidade
européia ou jovens proletários italianos) que se batem
no interior das celas por melhores condições de vida,
tais lutas são parcialmente defendidas pela esquerda que no
entanto não pode solucionar o problema da prisão com
algumas reformas. Freqüentemente, estas demonstrações
de conflito não são percebidas pelo Movimento, muito
ocupado na defesa de seus espaços de agilidade política,
como um qualquer partido... Enquanto isso está mudando a composição
da classe, nas fábricas aumentam-se os ritmos e há uma
renovação progressiva da classe operária, pessoas
mais jovens e imigrantes.
Estes
jovens trabalhadores precários, são esnobados pelos
sindicatos mas sofrem menos o enquadramento empresarial (em um ano
um trabalhador jovem pode trabalhar em 4-5 fábricas diferentes)
e a ética do trabalho (as funções destes trabalhadores
jovens sempre são as mais baixas e menos remunerados).
A
articulação produtiva torna ainda mais estendida a cadeia
industrial, mas é relegada às margens da cidade ou se
mudou completamente para a província. Estas lutas autônomas
freqüentemente são brutalmente reprimidas pela polícia,
veja-se a propósito o tratamento ao qual os trabalhadores imigrados
são submetidos (delações, expulsões, prisão).
Se
houver uma habilidade renovada do movimento autônomo para saber
juntar as novidades do período e da potencialidade das lutas
autônomas atuais, poderá ser uma nova estação
para o movimento autônomo e uma habilidade para o salvaguardar
da involução reformista e minimalista na qual verte
atualmente. Essa aposta será ganha pelo movimento autônomo
na Itália?
*
Em email posterior, os companheiros de Rete Operaia esclarecem que essa
empresa, na verdade, foi a Fiat de Turim: "as sabotagens suspenderam
algumas linhas levando à destruição de mais de
40 motores e ... da Punto (modelo da Fiat). Com a introdução
de um grande número de trabalhadores precários, aumentaram
as manifestações de insubordinação".
revista
Contr@corrente Numero 11
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